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"Todos vocês sabem que na Espanha nós não nos situamos como meros
observadores desinteressados..." - Hitler, em 29 de abril de 1937.
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A segunda-feira negra de Guernica
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Era uma 2ª feira, dia de feira-livre na pequena cidade da Biscaia.
Das redondezas chegavam as suas estreitas ruas os camponeses do
vale de Guernica, no país dos bascos, trazendo seus produtos para o
grande encontro semanal. A praça ainda estava bem movimentada quando,
antes das cinco da tarde, os sinos começaram os seus badalos. Tratava-se
de mais uma incursão aérea. Até aquele dia fatídico - 26 de abril de 1937 -
Guernica só havia visto os aviões nazistas da Legião Condor passarem sobre
ela em direção a alvos mais importantes, situados mais além, em Bilbao. Mas
aquela 2ª feira foi diferente. A primeira leva de Heinkels-11 despejou sua bombas
sobre a cidadezinha precisamente às 16:45 horas. Durante as 2 horas e 45 minutos
seguintes os moradores viram o inferno desabar sobre eles. Estonteados e deses-
perados saíram para os arredores do lugarejo onde mortíferas rajadas de metralha-
dora disparada pelos caças os mataram aos magotes. No fim da jornada contaram-se
1.654 mortos e 889 feridos, numa população não superior a 7 mil habitantes. Quase
40% haviam sido mortos ou atingidos. A repercussão negativa foi tão grande que os
nacionalistas espanhóis trataram logo de atribuí-la aos "vermelhos".
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Hitler apoia Franco
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Na realidade a tragédia começou oito meses antes, na noite de 25 de julho de 1936,
quando, entre um acorde e outro de uma ópera wagneriana, Hitler decidiu-se a apoiar
Franco. Na semana anterior o general espanhol havia sublevado o exército contra o
governo republicano-esquerdista da Frente Popular. O Führer estava em Bayreuth
para prestigiar o tradicional festival musical quando recebeu uma carta do caudilho. A
solicitação era modesta. Tratava-se de saber se o governo nazista contribuiria com
uma dezena de aviões de transporte e algumas armas. Hitler não hesitou. A vitória
comunista na Espanha provocaria, por estímulo, a "bolchevização" da França, e seu
regime ver-se-ia sitiado por ela e pela URSS de Stalin.
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A Legião Condor
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Em pouco mais de três meses depois chegava a Sevilha, a Legião Condor.
Comandada pelo General Sperrle, ela compunha-se de 4 esquadrões de bombar-
deios e outros 4 de combate, além de unidades antiaéreas, antitanques e de
panzers, num total de 6.500 homens. O acordo com os nacionalistas espanhóis
concebia uma grande autonomia das forças nazistas que subordinavam-se apenas
ao Jefe del Alzamiento, isto é ao próprio Franco. Madri, ainda em mãos dos republi-
canos esquerdistas, estava, desde o princípio do levante de 18 de julho, submetida
a bombardeios aéreos irregulares. Os estrategistas da Luftwaffe de Goering, recém
chegados à área do conflito, estavam excitados em aplicar, de forma maciça, uma
tática da terra arrasada. Qual seria o efeito dos bombardeios concentrado? Levas de
esquadrilhas conduziriam tipos de bombas diferentes - das de fragmentação às
incendiarias -, que seriam lançadas em formações compactas, ininterruptamente,
sobre um alvo qualquer a ser designado.
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A escolha de Guernica
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A escolha da pequena Guernica deveu-se a vários motivos. A cidade era um alvo
fácil, sem proteção antiaérea, além de não ter uma população numerosa. Além disso
abrigava um velho carvalho (Guernikako arbola) embaixo do qual os monarcas
espanhóis ou seus legados, desde os tempos medievais, juravam respeitar as leis e
costumes dos bascos, bem como as decisões da batzarraks (o conselho basco). Como
o levante de Franco foi também contra a autonomia regional, a destruição de Guernica
serviria como uma lição a todos os que imaginavam uma Espanha federalista ou
descentralizada. Assim, quando a notícia da dizimação provocada pelo
bombardeamento "científico" chegou aos jornais provocou um frêmito de horror em
todos os cantos do mundo. Quase todos os habitantes de cidades, em qualquer lugar
do planeta, sentiram instintivamente que estavam sendo apresentados a um outro
tipo de guerra, à guerra total, e que, doravante, por vezes, seria mais seguro estar-
se numa trincheira na frente, do que vivendo numa grande capital.
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A Guernica de Picasso
Estéticamente quem melhor captou esse sentimento foi Pablo Picasso. Vivendo em
Paris desde o início do século, já era uma celebridade quando o Governo da Frente
Popular o procurou para que fizesse algumas telas para arrecadar fundos para a
República. A violência e a indignação que causou o bombardeio fez com que ele se
concentrasse por 5 meses numa grande tela, quase um mural (350,5 x 782,3). Sua
primeira aparição deu-se numa Exposição Internacional sobre a Vida Moderna em
Paris, no dia 4 de junho de 1937. O público virou-lhe as costas.
Não era algo belo de ser visto. Picasso, para retratar o clima sombrio que envolvia o
desastre, utilizou-se da cor negra, do cinza e do branco. Como nunca a máxima de
Giulio Argan segundo a qual a "arte não é efusão lírica, é problema" tenha sido tão
explicitada, como na composição de Picasso. O painel encontra-se dominado no alto
pela luz de um olho-lâmpada - símbolo da mortífera tecnologia - seguida de duas figu-
-ras de animais. No centro um cavalo apavorado, em disparada, representa as forças
irracionais da destruição. A direita dele, impassível, um perfil picassiano de um touro
imóvel. Talvez seja símbolo da Espanha em guerra civil, impotente perante a destrui-
ção que a envolvia. Logo a baixo do touro, encontramos uma mãe com o filho morto
no colo. Ela clama aos céus por uma intervenção. Trata-se da moderna pietá de
Picasso. Uma figura masculina, geometricamente esquartejada, domina as partes
inferiores. A direita, uma mulher, com seios expostos e grávida, voltada para a luz,
implora pela vida, enquanto outra, incinerada, ergue inutilmente os braços para o
vazio, enquanto uma casa arde em chamas. Naquele caos a tecnologia aparece
esmagando a vida.
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Uma obra-prima do século XX
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Foi uma das grandes premonições histórico-estéticas do século. Dois anos depois
teria o início o martírio das populações de Varsóvia, de Londres, de Berlim, de Ham-
burgo, de Leningrado, de Dresden, de Hiroxima e de Nagasaki, que padeceriam,
devido aos bombardeamentos em massa, dos mesmos tormentos das imagens
dilaceradas do quadro de Picasso. Exatamente por não ter nenhum signo específico
de agressão, nenhuma suástica ou distintivo franquista ou falangista, a composição
transcendeu os acontecimentos da infausta Guerra Civil espanhola, tornando-se um
manifesto estético dos horrores provocados por uma tecnologia a serviço da
desumanização. Picasso pintou a obra-prima do século, onde se misturam as
contradições da nossa época: progresso e violência, catástrofe e prosperidade.