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"A minha mãe é a mais velha de três irmãos. Quando tinha 10 anos, apenas com a 3ª
classe (a 4ª completou-a já adulta), teve que sair do lugar onde vivia e ir servir para
casa de um casal com algumas posses, que viriam a ser os meus padrinhos. Devido
às dificuldades por que passou, a minha mãe sempre deu muito valor à comida
(a história da sardinha dividida por três era recorrente na minha infância).
A minha mãe sempre me obrigou a comer tudo o que havia no prato: «A comida não
é para estragar! É muito cara para deitar fora!»
Talvez por isso, ainda hoje me custe ver sobrar comida. Sempre que deixo alguma
coisa no prato, fico com o sentimento de culpa de quem está a desperdiçar um bem
precioso.
Na escola secundária aprendi que havia três tipos de fome: a fome aguda (que sen-
timos quando passam umas horas sem nos alimentarmos, e que já todos
experimentámos), a fome oculta (resultante da falta dos nutrientes básicos para o
equilíbrio do organismo) e a fome crónica (aquela que só vemos no telejornal, a das
crianças com barrigas de água dos países sub-desenvolvidos).
É justamente da fome crónica que quero falar. Porque é desta fome que falamos
quando falamos da fome.
Provàvelmente devido ao respeito pela comida na minha educação, de todas as
misérias humanas, nenhuma me choca mais do que a fome. Suporto ver tudo:
guerras, doenças, droga, tudo... Menos a fome.
Não consigo compreender um mundo metade consumista, frívolo e fútil, e metade
triste, miserável e faminto.
Não consigo compreender (e ainda ninguém me conseguiu explicar) a coerência
duma sociedade onde o excesso de produção alimentar dá direito a multas, e onde
enterrar ou destruir alimentos é mais usual que a sua distribuição.
Não consigo compreender, e não há de certeza nenhuma teoria que me consiga
convencer de alguma lógica por trás disto.
Podem falar-me de civilização, de democracia, de avanço tecnológico, das merdas
que quiserem.
Mas eu sei que onde há fome, não há liberdade.
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(Cidadão do Mundo)