
NÃO se encontram hoje no PCP figuras que possam equiparar-se, pelo protagonismo histórico assumido e pelo simbolismo de que se revestiram as suas lideranças - no partido e no governo do país - , à importância cimeira de Álvaro Cunhal e de Vasco Gonçalves. Nem dirigentes capazes de ocuparem o vazio de afectividade e admiração que Cunhal e o «companheiro Vasco» deixam nos corações e no imaginário dos comunistas portugueses.
A vida de Álvaro Cunhal confunde-se com a vida do PCP. Militante ao longo de 74 dos 84 anos de existência do partido, líder efectivo e reconhecido durante mais de 50 anos, foi ele quem reorganizou o PCP no início da década de 40, foi ele quem traçou o seu rumo ideológico, foi ele quem escolheu e moldou o seu núcleo dirigente, foi ele quem conduziu a resistência do partido até ao 25 de Abril, quem dirigiu a frustrada tentativa de conquista do poder nos anos do PREC e quem promoveu a obrigatória readaptação do PCP aos condicionalismos da democracia política e parlamentar.
A sua liderança foi tão marcante que se sobrepôs e quase remeteu a uma nota de rodapé a de outros dirigentes históricos do PCP como Bento Gonçalves, Militão Ribeiro, José Gregório ou Carlos Rates. Foi tão impressiva que, na sucessão, apenas deixou espaço ao aparecimento de lideranças anódinas e apagadas como a de Carlos Carvalhas. Álvaro Cunhal era o PCP. Era o símbolo da luta sem tréguas nas décadas da clandestinidade em que o partido se construiu e afirmou, era o guia indiscutível nas décadas de liberdade em que esteve à beira do poder e viu esvair-se gradualmente o seu peso e influência.
Vasco Gonçalves, por seu lado, era um militar que só tardiamente, com o 25 de Abril, foi empurrado para a actividade política. Não tinha a dimensão histórica, intelectual ou política de Cunhal, mas o seu papel no MFA e as circunstâncias do processo revolucionário levaram-no a ser designado primeiro-ministro em pleno PREC. E a tornar-se uma peça fundamental na estratégia política do PCP nos anos de 1974 e 1975. Uma estratégia que o «companheiro Vasco» assumiria integralmente, nos seus discursos e na sua acção, ao longo dos quatro Governos provisórios que encabeçou.
Cunhal dirigiu o PCP ao longo de meio século e Vasco Gonçalves apenas chefiou o Governo do país durante pouco mais de um ano. Mas foi, para os comunistas portugueses, o ano de todas as expectativas e emoções, de todos os avanços e ilusões. Daí o lugar especial que viria a ocupar, ao lado de Cunhal, na memória colectiva do PCP.
O 25 de Novembro, as primeiras eleições democráticas e para a Presidência da República fecharam o conturbado ciclo revolucionário, colocaram um ponto final na tentativa do PCP para controlar totalitariamente o poder e ficaram a assinalar a derrota política de Vasco Gonçalves, já retirado do palco pela nova relação de forças entre os militares, e de Álvaro Cunhal.
Quinze anos depois, chegaria a segunda derrota política de ambos. Com a queda do muro de Berlim e o esboroamento do bloco soviético eram o próprio modelo de sociedade e a ideologia política personificada por estes dois homens que entravam em colapso.
Ao contrário do que então se verificou com outros partidos comunistas de toda a Europa, que também entraram em derrocada, se cindiram ou extinguiram, o PCP foi perdendo votos e importância política mas resistiu. E, ao invés de líderes como Santiago Carrillo ou George Marchais, que desapareceram de cena ou foram caindo no esquecimento, as figuras de Álvaro Cunhal e Vasco Gonçalves mantiveram-se na primeira linha das referências dos comunistas portugueses.
Duplamente derrotadas, em Portugal e no mundo, mas como os últimos e venerados moicanos de uma ortodoxia há muito desajustada no tempo. Quinze anos passados sobre o fim do mundo soviético, um acaso do destino uniu as suas mortes aproximadas por menos de 48 horas. Um destino comum que ambos partilharam desde o 25 de Abril.
15 Junho 2005
A Opinião de José António Lima - Expresso