Intervenção do deputado João Semedo na
Sessão Solene do 25 de Abril
Celebramos hoje a revolução que tingiu Portugal de vermelho, cor de luta,
cor de festa.
De Norte a Sul, homens e mulheres, velhos e jovens, civis e militares,
puseram em marcha a mais exaltante mudança social e política da nossa
modernidade.
Todas e todos de cravo na mão. Cravos que ganharam, nesse dia e para
sempre, o seu lugar na nossa simbologia política, ilustrando a opção pelo
novo contra o velho, pelo futuro contra o passado, pela mudança contra a
resignação.
A revolução de Abril derrubou uma ditadura implacável sustentada na
perseguição até à morte se necessário fosse, dos que lhe resistiram e
contra ela se levantaram.
O 25 de Abril rompeu com um passado de miséria e atraso. Um país isolado,
triste e escondido do mundo. Um país pobre e exausto, um país massacrado e
devorado por uma guerra imposta e travada em nome de um império caduco.
Um país dominado e controlado por meia dúzia de famílias poderosas,
servindo e servindo-se do regime para explorar a força do trabalho e
condenar os portugueses a uma sobrevivência indigente e sub-humana ou ao
recurso desesperado à emigração.
Muitos não guardam memórias desse Portugal. Mas ele existiu, mesmo que
haja quem o queira esquecer, esconder, desculpabilizar ou mesmo recuperar.
Esse Portugal acabou no dia 25 de Abril às mãos dos capitães de Abril e
por força da torrente revolucionária que o povo trouxe para as ruas. O 25
de Abril foi em Abril, não foi em Novembro, como alguns nos tentam fazer
crer, reinventando uma história que não aconteceu como desejavam.
Direitos políticos, direitos sociais, desenvolvimento económico, abertura
de Portugal à Europa e ao Mundo, libertação cultural e descolonização
constituem o saldo que a História regista em favor da Revolução de Abril e
que a Constituição da República, dois anos mais tarde, assumiu e
desenvolveu como seus princípios estruturantes.
Reafirmamos a nossa cumplicidade com a Revolução. O seu impulso
transformador e transgressor projecta-se até aos dias de hoje. Como um
património que molda a nossa responsabilidade e nos implica no exercício
de uma cidadania exigente e solidária.
Mas também insubmissa. A uma suposta crise da democracia responderemos
sempre com mais democracia. À crise do Parlamento responderemos com mais
poder para o Parlamento. À crise da participação, responderemos sempre com
mais participação democrática nas empresas, nas escolas, nas cidades. À
crise do Estado Social responderemos sempre com mais Estado Social.
Porque não nos resignamos perante a pobreza, a desigualdade social, o
desemprego.
Porque não aceitamos uma economia que vive da especulação bolsista, do
incumprimento fiscal e da mão-de-obra barata.
Porque não pactuamos com os despedimentos selvagens, os encerramentos
fraudulentos, o trabalho precário e sem direitos, os salários miseráveis,
o bloqueio da contratação colectiva.
Porque não silenciamos o aborto clandestino, a perseguição e a
criminalização das mulheres que o praticam.
Porque recusamos a guetização dos imigrantes e a exploração clandestina da
sua força de trabalho.
Porque rejeitamos uma Europa neo-liberal, de serviços públicos mínimos.
Porque não nos revemos num nacionalismo saloio e egoísta.
Porque não queremos um país atrelado aos jogos de guerra da política
imperial, seja no Afeganistão, no Iraque ou no Irão.
Porque nada disto é uma fatalidade, um destino traçado, um fado sem saída
nem alternativa.
Dizia há umas semanas o primeiro-ministro que a esquerda tinha de se
libertar do seu passado. Respondemos hoje, no dia em que a esquerda
portuguesa celebra um dos momentos mais vibrantes da sua história, que
quem não sabe de onde vem nunca saberá para onde ir.
O estado do país, o estado a que chegámos, é o resultado de opções
políticas, de escolhas ideológicas. De uma direita que não desistiu da sua
revanche, de uma esquerda envergonhada cuja modernidade está salpicada de
naftalina, de uma esquerda simplex.
As políticas e os governos sucederam-se, indistintos, monótonos,
cinzentos, incapazes de vencer os problemas do país.
Para quem falhou absolutamente na construção do futuro, tudo serve de
álibi: a herança, o governo anterior, os funcionários públicos, o PREC, as
nacionalizações, o preço do petróleo, o crescimento da China, a
Constituição da República.
Os portugueses estão cansados de tanta desculpa. E não é da democracia ou
da Constituição que se queixam. Nem uma nem outra são responsáveis pelo
défice das contas públicas, a estagnação económica, o crescimento do
desemprego, o aumento da pobreza, o mau governo das cidades, as
assimetrias regionais.
A democracia e a Constituição não são responsáveis pelo insucesso escolar,
não dificultam o acesso ao Serviço Nacional de Saúde, não burocratizam a
Administração Pública, não atrasam o funcionamento dos tribunais, não
entravam a produção artística e cultural, não menorizam a investigação
científica e o progresso tecnológico.
O povo não se queixa da democracia e da Constituição.
Queixa-se dos escandalosos lucros da banca, da sacralização do mercado, da
subordinação da política ao poder dos grupos económicos e financeiros, do
assalto ao aparelho de Estado por sucessivas vagas de clientelas
partidárias.
Queixa-se da desagregação dos serviços públicos, da transformação do
estado social num estado assistencialista de vocação misericordiosa.
Queixa-se da redução das prestações sociais, do encerramento das
maternidades, das urgências, das escolas, dos postos de correio, das
linhas de comboio. Queixa-se do abandono do interior.
Queixa-se da passividade dos governos e dos governantes perante a
corrupção, o crime económico, a fuga aos impostos e a fraude fiscal.
Queixa-se do desvio dos dinheiros públicos, das negociatas de muitos
autarcas.
São essas políticas e os partidos que as defendem que estão em crise. É
deles que o povo se queixa, afasta e desinteressa.
Nem a democracia, nem a política estão em crise.
O que está em crise é a alternância sem mudança, a ausência de
alternativas, o centrão, o blairismo à portuguesa, os homens providenciais
sem alma, sem chama, sem projecto.
Cabe a cada um assumir as suas responsabilidades. A todos. Antes de mais,
aos próprios eleitos. Quem não cumpre as suas responsabilidades empobrece
a democracia.
A responsabilidade não é do sistema eleitoral, a responsabilidade é da
degenerescência limiana da vida parlamentar.
Queremos democracia eleitoral, impedindo que, na secretaria, se mude a
verdade democrática. Quem quer excluir, através da batota política dos
círculos uninominais, parte dos eleitores da representação parlamentar,
insulta a democracia e a vontade popular. Quem usa a sua própria incúria
como argumento a favor da mudança da lei eleitoral está a insultar a nossa
inteligência. Um Parlamento com os eleitos mais próximos dos eleitores
depende da vontade e da competência dos eleitos, não depende de
manipulações eleitorais e muito menos da promoção do caciquismo, a mais
velha das doenças do exercício do poder. A batota política só pode
promover a incompetência. Mais democracia não se consegue com menos
verdade democrática.
Queremos uma democracia mais próxima dos cidadãos, através de um processo
de regionalização participado, não engendrado entre caciques locais e
distritais partidárias. Queremos uma verdadeira regionalização de poderes
eleitos democraticamente pelo povo.
Queremos um Estado Social, esse que nasceu de Abril e que continua Abril.
Um Serviço Nacional de Saúde gratuito, universal e de qualidade. Uma
educação inclusiva e dirigida aos cidadãos. Um sistema de segurança social
que não se limite a dar a muito poucos o mínimo dos mínimos.
Queremos um desenvolvimento económico que não condene os nossos cidadãos
ao trabalho sem direitos e mal pago, e à obrigação de competir com a
super-exploração das potências asiáticas, onde há muitos dólares mas muito
poucos direitos.
Queremos igualdade com respeito pela diferença. A democracia é para todos,
nas suas diferenças.
Queremos uma comunicação social plural. Só o pluralismo garante a
liberdade. Como negámos e negamos qualquer tipo de censura de Estado, não
aceitamos a censura ditada pelos interesses do mercado. A democracia não
pode ser refém dos interesses económicos.
Só uma democracia capaz de contrariar a concentração da propriedade dos
meios de comunicação social, e de defender a autonomia dos jornalistas e o
pluralismo de opiniões, se defende a ela própria.
O 25 de Abril começa, como sempre, hoje. Não é uma peça de museu, não é
uma relíquia do passado. É um projecto de futuro.
Saibamos nós porque o fizemos e saberemos voltar sempre a começá-lo. É por
isso que repetimos de novo: 25 de Abril sempre!