Interrogado sobre se haveria «um conluio ou uma cabala» contra o Governo, Gomes da Silva, usando toda a argúcia de que já deu provas, admitiu que sim. E explicou que essa «cabala» consiste no seguinte - ou consistia, visto que um dos seus tenebrosos agentes já foi abatido: o EXPRESSO, ao sábado, o «Público», ao domingo de manhã, e Marcelo, ao domingo à noite, produziam afirmações «falsas» e «constantemente negativas» em relação à actuação do Governo.
Sobre a falsidade das notícias nada disse que fundamentasse a acusação. Mas admite-se que, do seu ponto de vista, baste o Governo desmentir uma ou outra notícia inconveniente - mesmo que, por hipótese, venha do seu interior - para ela passar a ser falsa. Quanto a serem «constantemente negativas» - não sabemos se as notícias se as opiniões, porque já se percebeu que o ministro distingue mal as duas coisas - não lhe ocorreu que a eventual coincidência entre o que o EXPRESSO, Marcelo e o «Público» diziam talvez resultasse de, nestes três meses de mandato, o primeiro-ministro e o Governo se terem esforçado bastante por dar aos jornais e aos comentadores abundantes razões para críticas.
A parte mais divertida, se não fosse tão patética, da intervenção de Gomes da Silva estava, no entanto, para vir. «As cabalas», disse ele sem rir, «existem independentemente da vontade subjectiva de as constituir». Quer dizer, independentemente da sua «vontade subjectiva», mas uma vez que dão notícias «constantemente negativas», o EXPRESSO, Marcelo e o «Público» seriam agentes sinistros de uma «cabala» contra o Governo. Só porque o ministro Gomes da Silva o afirma. Ou, melhor, só porque ele tem a «vontade subjectiva» e objectiva de inventar uma cabala, a fim de disfarçar a sua dificuldade - e a do primeiro-ministro, que lhe deu cobertura - de conviver com a crítica e a liberdade de expressão.
Bem vistas as coisas, tinha sido melhor ideia o ministro ir sozinho à Alta Autoridade, em vez de chamar os jornais e as televisões. Se tivesse prestado o seu depoimento no segredo da sala de audições, não teria feito, aos olhos de todo o país, a figura triste a que se prestou. É que o ridículo mata, como sabemos. E, por este andar, o Governo - ou o que resta da sua credibilidade - vai morrer depressa. Mesmo que continue em funções até ao fim do mandato.
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PS - Entre Rui Gomes da Silva, José Veiga, Pinto da Costa, Alberto João Jardim e Luís Filipe Vieira pode não haver mais nada em comum senão a boçalidade e a intolerância. Mas as suas intervenções por estes dias - e toda a agitação que provocaram - justificam que todos nos interroguemos e reflictamos: como é possível que estas figuras tenham adquirido a projecção e o poder de que dispõem na nossa vida pública? Qual a responsabilidade dos «media» na construção da sua imagem? Quais os riscos, para a democracia e para a sociedade, de os discursos e os métodos que já vigoram no mundo do futebol se generalizarem ainda mais ao mundo da política?
19 Outubro 2004
(A OPINIÃO DE - FERNANDO MADRINHA - EXPRESSO)