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Retornando para a Iasnaia Poliana, a sua tão famosa propriedade, Leon Tolstoi
deparou-se, à beira do atalho que tomara, com um exuberante cardo tártaro.
Atraído pela beleza da sua flor, cismou em querer arrancá-lo por inteiro. Puxou,
puxou, até que, num gesto mais vigoroso, o extraiu com raíz e tudo. Ufa! Que obra!
A teimosia da planta em desgrudar-se do chão fez com que, aos poucos, ele recor-
dasse a gente do Cáucaso. Quando jovem, ele servira lá como artilheiro, entre
1851-54, enfrentando a resistência do líder checheno Chamil, que se estendeu até
1859. Como o cardo tártaro que o desafiara, aqueles montanheses - os chechenos,
os inguches, os circassianos, os bats, os ossetianos, os azires e mais 50 outros tantos
grupos étnicos -, tradicionalmente, batiam-se até o fim contra qualquer tentativa de
remoção.
Entrando em casa, Tolstoi sentou-se na sua escrivaninha e, tomando a pena, deu-se
a narrar a fascinante história de Hadji Murat (um lendário personagem, um naib, um
misto de chefe clãnico e valentão foragido da lei, daquele canto perdido do sul da
Rússia).
Áspera, e com altíssimos picos pedregosos, cercados por incríveis despenhadeiros, a
cordilheira do Cáucaso (que liga os dois mares da Ásia Menor, o Cáspio e o Negro), é
uma das esquinas do mundo. Logo, uma torre de Babel. A confusão das falas que lá
impera é tamanha que os historiadores árabes chamaram-na de Jabal al-Alsine,
a "Montanha das línguas". Desde 1723 aquela exótica região começou a cair no
controle do Império Russo, quando Pedro, o Grande, venceu uma curta guerra
contra o xá da Pérsia. Uns anos antes desta vitória, o czar enviara para lá a missão
do Príncipe Volynsky, imaginando que dali, do Mar Cáspio (que a envolve pelo leste),
partia um rio em direcção à Índia, o que lhe abriria as portas do rico comércio com o
Oriente.
Morto logo em seguida à conquista, Pedro não viu nada dessa riqueza. Porém, no
século 19, os russo sentiram-se compensados. Ao redor de Baku, no atual Azerbaijão,
desde 1872, passaram a explorar um dos mais prodigiosos lençóis petrolíferos até
então descobertos. Foi a riqueza desse produto estratégico para a vida moderna, que
atraiu para lá, durante a invasão da URSS pelos nazistas, o Iº Exército Panzer do
General von Kleist, que ocupou a Chechênia em julho de 1942, chegando, com a
entusiasmada adesão dos habitantes locais, a erguer a bandeira nazista no Monte
Elbrus, o pico mais elevado do Cáucaso. Atitude que, como não poderia deixar de ser,
os soviéticos não perdoaram depois que conseguiram expulsar os nazistas da URSS.
A longa duração do domínio que os russos exerceram, e provavelmente ainda
exercerão sobre o Cáucaso, encontra sua explicação na própria leitura do "Hadji
Murad" de Tolstoi. As intensas rivalidades tribais, a existência de religiões adversárias
(cristã e muçulmana, sunita e xiita), e a proximidade de duas poderosas nações islâ-
micas (a Turquia e o Irão) fez com que o fortim russo, com sentinela de plantão, fosse
visto por muitos caucasianos, particularmente os cristãos, como um mal menor, senão
como o único capaz de garantir uma certa ordem e uma relativa paz no caos histórico
em que quase sempre viveram.
Mesmo assim, que se precavessem os russos! O czar Pedro, nas suas instruções ao
príncipe Boris Kurkhistanov, o representante imperial no Cáucaso, recomendou que
lidassem bem com a tribos locais, não lhes causando "constrangimento nem rudeza".
Caso, porém, isso não funcionasse com aqueles povos orgulhosos, que fosse severo
com eles, porque, afinal das contas, como ele disse, oni ne takoi narod, kak v
Evrope!, eles, os chechenos, "não pertenciam às nações européias".
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Com a flor do cardo despedaçada na palma da mão, Tolstoi lamentou-se. Esganara a
pobre planta para nada. Contemplando o estrago, vendo-a esmaecida, moribunda,
deu-se conta de que seu esforço só a desgraçou. De certa forma, esta é a situação do
exército russo que, em fevereiro de 2000, se adonou de Grozny e de quase toda a
Chechênia, repetindo com as armas o que o grande escritor, num equívoco, fizera,
há bem mais de um século atrás, com as mãos.